quinta-feira, 3 de junho de 2010

Perturbações não-lineares no sistema de poder mundial




Publicado no Resenha Estratégica:

Embora ainda seja cedo para avaliar todo o seu alcance, o acordo tripartite de Teerã sobre o programa nuclear iraniano introduziu, indiscutivelmente, um elemento novo na ordem de poder mundial prevalecente, em grande medida determinada pela agenda política das potências nucleares com assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS). Se pode ser prematuro qualificar o evento como um ponto de inflexão desse ordenamento global, certamente, ele sinaliza um fator de perturbação do mesmo, em especial para a agenda dos setores mais radicais do Establishment anglo-americano, cujas reações denotam uma clara percepção da ameaça representada para os seus interesses exclusivistas.

Nesse contexto, a intensa mobilização da secretária de Estado Hillary Clinton para desqualificar o acordo é uma atitude esperada, uma vez que ela representa precisamente aqueles interesses que encarnam o "exclusivismo" estadunidene no palco mundial em sua forma mais incisiva, com o poder militar como ponta de lança da política exterior de Washington, a despeito de toda a retórica sobre o "poder inteligente" (smart power). Da mesma forma, a igualmente intensa atividade diplomática turco-brasileira junto aos membros do CS e à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), em defesa do acordo e para evitar o apressamento das sanções contra o Irã pretendidas pelos EUA e seus aliados imediatos no chamado grupo P5+1 - Reino Unido, França e Alemanha -, é um sinal de novos tempos na arena internacional. Em uma instigante análise publicada em 28 de maio ("O eixo Brasil-Turquia, ou a revolta ribombante"), o sítio franco-belga De Defensa, especializado em assuntos estratégicos e militares, afirmou de forma categórica:

Se há uma evidência convincente da decrepitude do sistema/bloco americanista-ocidentalista, esta é a atitude cada vez mais combativa dos brasileiros e dos turcos diante da rejeição pelo bloco da sua iniciativa iraniana, de rejeição incondicional, rejeição não defendida senão por absurdo, uma rejeição em geral de desprezo ou até mesmo grosseira e irritante, como no caso de um [o chanceler francês Bernard] Koucher. Pode-se, mesmo, dizer que os turcos e brasileiros começam a se animar, enquanto o Ocidente pontifica. (...)

No mesmo dia, o sítio Stratfor, que geralmente representa a visão dos "neoconservadores" e dos setores radicalmente pró-Israel do Establishment estadunidense, divulgou uma análise significativamente intitulada "Uma história de duas potências emergentes", na qual comenta a visita do premier turco Recep Erdogan ao Brasil e o impacto da aliança estratégica entre os dois países:

Esse novo período, vislumbrado por Ancara e Brasília, é um em que os líderes do mundo desenvolvido podem se erguer para desafiar as potências globais dominantes. Os EUA, não exatamente acostumados a serem desenvolvidos tão visivelmente por essas potências emergentes, não têm ocultado o seu desconforto... No presente ambiente geopolítico, o Brasil e a Turquia têm sob o cinto as ferramentas para tornar as suas presenças conhecidas no palco global. Enquanto isso, Washington ainda tem problemas em acostumar-se com a ideia de potências menores preenchendo o espaço dos EUA.

As contrapressões turco-brasileiras parecem estar produzindo efeitos positivos. Em um artigo publicado em 2 de junho no sítio Asia Times Online, o historiador e jornalista Gareth Porter, um arguto observador da política estadunidense, afirmou que há indícios de que o acordo de Teerã afetou a unidade dos integrantes do CS quanto às sanções, levando a Rússia a pressionar os EUA para participar de novas conversas com o Irã sobre os termos propostos no acordo, tendo a China manifestado também uma atitude favorável ao mesmo. Porter menciona declarações do chanceler russo Sergei Lavrov, reafirmando que Moscou não apenas apoia o acordo, como tem conversado com Washington, Paris, Brasília e Ancara para assegurar a sua implementação. Igualmente, ele cita um artigo do vice-secretário-geral da Associação de Controle de Armas e Desarmamento da China, Zhai Dequan, divulgado pela agência Xinhua, no qual este afirma que, "como a situação mudou, as ações punitivas previamente planejadas devem, também, ser alteradas de acordo, o que significa que não há mais qualquer racionalidade para a imposição de mais sanções contra o Irã". Segundo Porter, a entidade é conhecida por refletir as políticas da chancelaria chinesa.

Porter vai além e afirma que, na sexta-feira 28 de maio, um sítio associado ao governo iraniano afirmou que o presidente Barack Obama teria determinado à secretária Clinton o envio de um negociador a Viena (sede da AIEA), para tratar dos detalhes do acordo com representantes iranianos, nas próximas três semanas.

As repercussões do acordo de Teerã também se fizeram presentes nas negociações da revisão do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), onde, apesar da negativa das potências nucleares do CS de assumir qualquer calendário referente ao desarmamento nuclear, a declaração final do evento quebrou um tabu ao mencionar nominalmente as potências nucleares não-integrantes do tratado, em especial Israel, instando-as a aderir a ele. A negativa dos EUA, tradicional aliado de Israel, em interferir na iniciativa, é outro indício de que as relações entre o governo Obama e Tel Aviv não vivem os melhores dias.

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