terça-feira, 9 de novembro de 2010

Caçada do multiculturalismo


O livro que pretendem censurar, em uma edição antiga, e seu
criador, caricaturado por Theo
(fontes: lobato.globo.com - desenho e afinsophia.wordpress.com - livro)

     

     Recomendo a leitura de importante texto de Aldo Rebelo contra a censura da cultura e da literatura brasileiras pelos tribunais de inquisição do politicamente correto, cuja vítima mais nova foi o grande escritor Monteiro Lobato, pai do Jeca Tatu e responsável pela criação de um mundo ficcional infantil que até hoje faz parte da memória das crianças brasileiras. Segue o artigo publicado na Folha de S. Paulo, que também pode ser conferido no Vermelho:





Aldo Rebelo: Monteiro Lobato no tribunal literário


O parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) de que o livro "Caçadas de Pedrinho" deve ser proibido nas escolas públicas, ou ao menos estigmatizado com o ferrão do racismo, instala no Brasil um tribunal literário.

A obra de Monteiro Lobato, publicada em 1933, virou ré por denúncia -é esta a palavra do processo legal-de um cidadão de Brasília, e a Câmara de Educação Básica do Conselho opinou por sua exclusão do Programa Nacional Biblioteca na Escola.


Na melhor das hipóteses, a editora deverá incluir uma "nota explicativa" nas passagens incriminadas de "preconceitos, estereótipos ou doutrinações". O Conselho recomenda que entrem no índex "todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante".


Se o disparate prosperar, nenhuma grande obra será lida por nossos estudantes, a não ser que aguilhoada pela restrição da "nota explicativa" -a começar da Bíblia, com suas numerosas passagens acerca da "submissão da mulher", e dos livros de José de Alencar, Machado de Assis e Graciliano Ramos; dos de Nelson Rodrigues, nem se fale. Em todos cintilam trechos politicamente incorretos.


Incapaz de perceber a camada imaginária que se interpõe entre autor e personagem, o Conselho vê em "Caçadas de Pedrinho" preconceito de cor na passagem em que Tia Nastácia, construída por Lobato como topo da bondade humana e da sabedoria popular, é supostamente discriminada pela desbocada boneca Emília, "torneirinha de asneiras", nas palavras do próprio autor: "É guerra, e guerra das boas".


Não vai escapar ninguém -nem Tia Nastácia, que tem carne negra". Escapou aos censores que, ao final do livro, exatamente no fecho de ouro, Tia Nastácia se adianta e impede Dona Benta de se alojar no carrinho puxado pelo rinoceronte: "Tenha paciência -dizia a boa criatura. Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá...".


Não seria difícil a um intérprete minimamente atento observar que a personagem projeta a igualdade do ser humano a partir da consciência de sua cor. A maior extravagância literária de Monteiro Lobato foi o Jeca Tatu, pincelado no livro "Urupês", de 1918, como infamante retrato do brasileiro. Mereceria uma "nota explicativa"?


Disso encarregou-se, já em 1919, o jurista Rui Barbosa, na plataforma eleitoral "A Questão Social e Política no Brasil", ao interpretar o Jeca de Lobato, "símbolo de preguiça e fatalismo", como a visão que a oligarquia tinha do povo, "a síntese da concepção que têm, da nossa nacionalidade, os homens que a exploram".


Ou seja, é assim que se faz uma "nota explicativa": iluminando o texto com estudo, reflexão, debate, confronto de ideias, não com censuras de rodapé.


O caráter pernicioso dessas iniciativas não se esgota no campo literário. Decorre do erro do multiculturalismo, que reivindica a intervenção do Estado para autonomizar culturas, como se fossem minorias oprimidas em pé de guerra com a sociedade nacional.


Não tem sequer a graça da originalidade, pois é imitação servil dos Estados Unidos, país por séculos institucionalmente racista que hoje procura maquiar sua bipolaridade étnica com ações ditas afirmativas.


A distorção vem de lá, onde a obra de Mark Twain, abolicionista e anti-imperialista, é vítima dessas revisões ditas politicamente corretas. País mestiço por excelência, o Brasil dispensa a patacoada a que recorrem os que renunciam às lutas transformadoras da sociedade para tomar atalhos retóricos.


Com conselheiros desse nível, não admira que a educação esteja em situação tão difícil. Ressalvado o heroísmo dos professores, a escola pública se degrada e corre o risco de se tornar uma fonte de obscurantismo sob a orientação desses "guardiões" da cultura.


Fonte: Folha de S.Paulo

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