sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Lição de um tigre asiático

A Resenha Estratégica mais uma vez traz uma análise importante a respeito da economia brasileira, desta vez vislumbrando as escolhas a fazer em relação a sua soberania nacional, de desregulamentação do sistema financeiro, de um lado, e do exemplo da Malásia, o tigre asiático que adotou uma política econômica contrária ao que desejava o Fundo Monetário Internacional (FMI), porta-voz do neoliberalismo, de outro. O texto segue na íntegra:

O que o Brasil em 2010 pode aprender com a Malásia de 1998
 
17 de novembro de 2010 (www.msia.org.br) - Em setembro de 1998, em meio ao furacão que se abateu sobre os mercados financeiros asiáticos, o Governo da Malásia adotou soberanamente um regime de controle de câmbio seletivo, juntamente com outras medidas emergenciais de proteção dos interesses nacionais. A medida demonstrou ao mundo que, mesmo uma nação que estava longe de alinhar-se entre as mais poderosas em termos econômicos e políticos, poderia sobreviver rechaçando totalmente os ditames da oligarquia anglo-americana e do Fundo Monetário Internacional (FMI), que exigiam mais monetarismo, mais "globalismo" e mais "livre mercado". Um ano depois, foi possível comprovar que a Malásia teve êxito, enquanto as nações que seguiram ao pé da letra aquelas receitas ainda enfrentavam sérios problemas econômicos e a ameaça de ruína.
No segundo semestre de 1998, a Ásia estava sendo devastada por uma onda de especulação e desintegração financeira, com uma horda de especuladores como George Soros, respaldados pelos órgãos multilaterais que supervisionam as finanças mundiais, desfechando ataques impiedosos contra as moedas e as economias da Malásia, Tailândia, Coréia do Sul e Indonésia.
A crise havia se iniciado um ano antes, em julho de 1997, quando o governo da Tailândia, sob um implacável ataque especulativo contra a moeda nacional, o baht, tomou a decisão de desvinculá-la do dólar estadunidense e deixá-la "flutuar", medida logo seguida pela Malásia. Ao final do ano, o ringgit malaio havia se desvalorizado em 50% e o índice KLSE da Bolsa de Kuala Lumpur havia caído na mesma proporção.
Em 1º de setembro de 1998, o primeiro-ministro malaio Mahathir bin Mohamad deixou estupefatos a City de Londres e Wall Street, ao impor um controle seletivo de capitais, assim como um estrito controle do câmbio: os fluxos especulativos de "dinheiro quente" não podiam mais entrar na Malásia para saqueá-la e fugir em seguida. Mahathir suspendeu de fato a atividade do Central Limit Order Book, de Cingapura, de onde os especuladores estavam atacando a Bolsa de Kuala Lumpur. Além disso, aumentou o crédito bancário para a indústria e a agricultura e ampliou significativamente o orçamento público para o desenvolvimento da infraestrutura.
Diante do perigo, os financistas da City, Wall Street e seus porta-vozes responderam raivosos e com ameaças. Uma breve amostra das respostas ilustra a temperatura política daquele momento. 
Em 10 de setembro, a agência de avaliação de risco Fitch divulgou um boletim afirmando: "A recente imposição do controle de câmbio minou seriamente a confiança dos investidores estrangeiros na Malásia e coloca a economia em situação insustentável, o que poderá afetar adversamente o seu crédito externo." Ato contínuo, a agência rebaixou os títulos da dívida malaia à categoria F3, equivalente a "lixo".
Em 21 de setembro, a Dow Jones se manifestou: "As restrições do governo da Malásia, efetivamente, tirarão o país do rol dos investimentos, aos olhos dos investidores e dos agentes de investimento, que operam fora do país."
O próprio Soros escreveu em seu livro A crise do capitalismo global, publicado no final do ano: "Alguns países, como a Malásia, podem ir a pique, se persistirem em suas medidas xenófobas contra o livre mercado."

Em 16 de novembro, se juntou ao coro dos irados o então vice-presidente dos EUA, Al Gore, em um célebre discurso proferido na cúpula do Foro de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), em Kuala Lumpur, quando criticou as medidas protecionistas tomadas por Mahathir, afirmando "se deveria permitir ao livre mercado realizar a sua magia", e que "o protecionismo só nos protege da própria prosperidade". Com arrogância, Gore elogiou as manifestações públicas contra o governo malaio proferidas por círculos políticos ligados ao eixo Wall Street-City e ao FMI.

Medidas de guerra financeira

O conjunto de medidas ditado por Mahathir se baseou em quatro diretrizes principais:
1) Controle seletivo de capitais. Deteve a especulação contra o país e a entrada e saída de "dinheiro quente". A medida pôs fim à compra e venda ilícita de ações da Malásia fora do país. Segundo, impôs o controle de câmbio. A moeda já não flutuaria nem seria intercambiada livremente. Os possuidores de ringgits no exterior teriam que levá-los de volta ao país antes de certa data, após a qual perderiam o seu valor. A compra de dólares passou a exigir a comprovação de que seriam usados para propósitos econômicos legítimos. Além disso, o câmbio do ringgit foi fixado em 3,80 por dólar. Isto estabilizou a moeda e evitou que o Banco Negara, o banco central do país, tivesse que gastar (e, possivelmente, perder) uma grande quantidade de suas divisas estrangeiras, na intenção de sustentar o valor da moeda.
Igualmente, foi imposta uma "quarentena" de um ano aos investimentos em títulos e ações no país, o dinheiro proveniente do exterior não poderia abandoná-lo antes de um ano. O controle deteve a especulação de tal modo que, em fevereiro de 1999, considerou-se que a medida poderia ser afrouxadas, sendo então adotado um imposto sobre a remessa de lucros para fora do país, enquanto a soma principal dos investimentos estrangeiros ficava isenta dele. A medida bloqueou os investimentos "quentes" de curto prazo, já que os lucros não poderiam ser retirados sem ter que pagar impostos significativos. A desvalorização do ringgit e a especulação estrangeira a curto prazo foram detidas.
2) Juros baixos e liquidez para a economia real. Durante a crise especulativa, a economia física do país se contraiu, enquanto os enfraquecidos bancos nacionais diminuíam os empréstimos, o que ameaçava um derretimento ainda mais profundo da economia física. Diante da recomendação clássica do amargo "remédio monetarista" do FMI, o aumento dos juros e a restrição do crédito, Mahathir decidiu tomar um rumo oposto. Por sua sugestão, o Banco Negara reduziu os juros básicos, que eram de 11% em junho de 1998, até 6%, em junho de 1999. Ao mesmo tempo, o banco determinou a redução do encaixe obrigatório, as reservas monetárias que cada banco deve manter em caixa, dos 13,5% de fevereiro de 1998, para 6%. A redução das reservas liberou esses recursos para novos empréstimos e aumentou a liquidez do sistema bancário, para favorecer a indústria e a agricultura.
3) Aumento do orçamento para infraestrutura e combate à pobreza. Em julho de 1998, o governo criou um fundo especial de 5 bilhões de ringgits para investimentos em infraestrutura, especialmente, ferrovias, portos, rodovias, obras de abastecimento de água, drenagem e esgotos. Além do fundo, também foi dada especial relevância no orçamento aos programas de proteção dos setores de baixa renda dos efeitos adversos da crise financeira, incluindo programas de habitações de baixo custo e abastecimento. Com isso, foi evitada uma explosão social que acometeu várias nações vitimadas pela crise, como a Indonésia e outras.
4) Reorganização de empresas financeiras. Foram criadas três entidades financeiras específicas: 
- Danaharta, empresa de administração de ativos, para enfrentar o problema do grande número de empréstimos vencidos nas carteiras dos bancos nacionais;
- Danamodal, orientada para capitalizar e consolidar o sistema bancário, injetando capital nos bancos problemáticos; e o
- Comitê de Restruturação da Dívida Empresarial, para facilitar a reestruturação e redução de dívidas das empresas viáveis.
A reorganização bancária e da dívida das empresas foi um aspecto auxiliar, mas benéfico de todo o pacote. Posteriormente, Mahathir afirmou que, quando concebeu a idéia de impor o controle seletivo de capitais, se defrontou com uma certa resistência em seu gabinete, principalmente, do ministro da Fazenda Anwar Ibrahim, notoriamente vinculado aos interesses da City e de Wall Street, demitido sumariamente em 2 de setembro (e, em 1999, sentenciado a seis anos de prisão por acusações de corrupção).

Resultados

A despeito do forte impacto da crise na economia malaia, os resultados das ações protecionistas adotadas por Mahathir foram imediatos: 
- entre junho de 1998 e junho de 1999, a produção de automóveis aumentou em 112%;
- no mesmo período, a produção de ferro e aço aumentou 41%;
- a produção de alimentos registrou um aumento de 16%;
- em junho de 1998, o volume de crédito oferecido pelo sistema bancário aos setores industriais e agrícolas foi de 4,98 bilhões de ringgits; em fevereiro de 1999, a oferta de crédito atingiu uma média semanal de 6,55 bilhões de ringgits.
O que Mahathir demonstrou foi o funcionamento de uma política econômica orientado pelo princípio da soberania do Estado nacional. Por ocasião da "crise asiática", a Malásia era uma pequena nação de 22 milhões de habitantes, mas a determinação política das suas lideranças a fez resistir ao ataque implacável dos financistas internacionais e derrotá-los. Com isso, a Malásia foi o primeiro país a emergir da crise, deixando um exemplo concreto do que um Estado soberano pode fazer diante das forças financeiras aparentemente implacáveis, se tiver à frente um líder determinado e comprometido com o bem comum.

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