quinta-feira, 19 de maio de 2011

Vera Romariz: Rolo de Filme

Recebi esta bela crônica da amiga Vera Romariz, poetisa, escritora, a quem agradeço e envio um grande abraço:


Rolo de Filme

Pouco a pouco (ou há muito tempo, não sabia) começou a trocar a vida pela imagem da TV; por esses canais pagos que trazem filmes pra dentro de uma sala qualquer. E nem se deu conta que a tela e sua vida encolhiam pouco a pouco. Filme pago, cadeira confortável, ficar em casa. Substituiu a vida pelo movimento de um rolo de filme. O companheiro ficou satisfeito, com jeito de “Eu não disse?”. A violência na rua veio a calhar pros projetos dele de forçá-la a deixar-se apagar, como ele havia deixado, há muito tempo, refugiando-se cada vez mais no jardim, na sala, em si mesmo.

Ele se entranhou na casa de um tal jeito, que elogiar qualquer parte dela era elogiá-lo. Mudar um móvel de lugar seria feri-lo. Cometer o fatal desatino de comprar algo novo seria punido com uma grosseria, um silêncio, ou uma forma estranha de defesa de reverter a crítica. Se ela reclamava de um ato mais ríspido, ele rapidamente dizia ”Estava querendo mesmo reclamar de você. Muito nervosa.”

Porque ele sabia, inimigo próximo, excessivamente próximo, que o ponto fraco da mulher era o auto-controle, um tolo jeito de excessiva sanidade. Que se traduzia no falar baixo, pensado, medido, resguardado. E ele tirava partido disso. Gritava quando queria encerrar um assunto. Precisava cortar o movimento vital dessa mulher, um rolo de filme alegre que o assustava, que punha em relevo o congelamento da própria existência.


E se ele se entranhava na casa, ela mergulhava na tela do cinema caseiro. E se sentiu o personagem homossexual de O beijo da mulher aranha, de Manuel Puig no filme de Babenco. William Hurt paralisado, olhos abertos, vivendo uma vida que não era sua, estranhamente embevecido pela memória dos filmes, atrás das grades de uma prisão. Um encantamento estranho entre fezes e sangue. E as séries policiais? De uma insanidade deliciosa. Gostava delas. Dos heróis que se rebelavam pelos socos, pelas armas. Um mundo rápido e certeiro. Sem auto-controle.

De repente, assustada, ela percebeu que estavam ficando perigosamente parecidos. E uma luz de perigo se acendeu na mente da mulher em movimento. Pois ela nem conseguia mais ver o antigo rosto móvel no espelho.

O abismo entre o movimento das cenas dos filmes e a casa aumentava vertiginosamente. As cenas rápidas e coloridas; o casamento imobilizado, em um lado a lado sem frutos. E o tempo de projeção, no imobilismo das cadeiras que não sonham, ficou cada vez mais longo. Como sair do cinema e enfrentar a cara feia do porteiro? O retorno às compras, ao supermercado. Às contas - cansativas e reincidentes - por pagar.

Um dia, em esforço maior que seu próprio ritmo, como o editor que corta cenas na própria carne, disse ao parceiro congelado tudo que precisava dizer. Que ele roubara a vida dela. Que sugara o melhor de sua alegria nesse carbono preto que era a vida dele. Que ele envelhecia mal, sem paciência e tolerância. Que o amor dele virara uma lâmina perigosamente voltada em sua direção.

Mas por escrito. Em uma carta longa como o rolo de um filme. Que acabou em uma única sessão. Com lágrimas de alívio.

Vera Romariz

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