segunda-feira, 27 de junho de 2011

Afeganistão: tirando um pouquinho

Reproduzo aqui texto do jornalista e escritor Ivan Lessa, publicado em sua coluna no BBC Brasil. Ivan Lessa foi editor e um dos principais colaboradores do jornal O Pasquim que marcou época, em plena ditadura, como um instrumento de combate à censura utilizando muito humor.



Eu fiquei acordado na madrugada de quarta para quinta-feira ferozmente determinado a ouvir na íntegra o discurso do presidente Barack Obama a respeito da retirada de forças americanas no Afeganistão.

Estou mais acostumado às invasões americanas. Confiram nos tomos históricos, googleiem, vão de Wikipédia (está cada vez melhor) e verão a longa história de salvar os outros com bala de canhão, espingarda e baioneta.

Desde a salvação sanguinolenta da Nicarágua, em 1919, que amo ler a respeito, já que é mais sórdida e também a mais esquecida de todas inclusive as... Ora, basta citar um país, tribo, barraca de praia, o que for, que eles invadiram ou deram uma peitada na marra a fim de mudar regime destinado, instaurar a lendária pax americana ajudando, assim, as pessoas a verem, até quase à cegueira, a luz ofuscante da liberdade.

Aqui mesmo, entre nós, quando do golpe militar de 1964, eles já estavam passando cuspe na mira da carabina e navios bélicos (consta ser mais de um; como se fosse necessário) rondavam de longe nossos mares assustando cisnes brancos em noites de lua.

Pouquinho depois, em 1973, foi a vez do Chile. A verdade é que muita gente andou pagando o pato só porque os EUA perderam, mas perderam mesmo, a Guerra do Vietnã (1961-1975), uma bela iniciativa do saudoso presidente liberal John Fitzgerald Kennedy, ora sendo telebiografado em hilariantes episódios do History Chanell em debochado conluio com a BBC.

O History Chanel americano se recusou a levar. Passam documentário sobre disco voador, sim senhor, mas não perseguem, como quem invade Granada (ou terá sido Granada na Espanha?), em 1983, ou depõe, invadem, prendem, matam e esfolam o presidente General “El Piño” (tinha boa pele) Noriega, do Panamá em 1983, por consumo de drogas que fogem à média norte-americana.

O canal em questão, o só americano, frise-se, também já focalizou outras peraltices americanas: Camboja, Irã de Mossadegh, República Dominicana, Haiti de “Papa” Doc”, Guatemala e, mais de uma vez, a Coreia. Gozados os americanos, matam as cobras e depois interpretam como foi.

Mas em matéria de televisão, eu queria é falar do discurso eleitoral de Obama, que teve a duração de uns 13 minutos. De tarde, sempre pela televisão (é, eu não tenho, ou não posso ter, muito que fazer), acompanhei uma fala mais para a empolgada do que a eloquente primeira-dama, Monique, digo, Michelle Obama, na África do Sul, em companhia de Nelson Mandela e suas duas filhas (lá dela, não de Nérso), sendo enérgica e mostrando um poderoso arsenal discursivo. Espero que não seja prenúncio de uma tentativa de salvação da África do Sul, uma vez que os americanos têm a mania de construir nações a ferro e fogo amigo, a que dão o pitoresco nome de nation building,

Mas à mais que anunciada proposta eleitoral para as eleições gerais do ano que vem nos EUA. Obama revelou que, até julho do ano corrente, providenciará a pronta retirada de 5 mil soldados, e mais 5 mil até o Natal, para irem cantar White Christmas no hospital para neuroses de guerra, ou, como se diz agora, Transtornos de Stress Pós-Traumático.

Foi mais longe, o grande Obama, que o homem não brinca com distrito eleitoral (não se esqueçam que, no primeiro ano de seu mandato, 2009, enviou 33 mil soldados para o Afeganistão), seja no Maine ou em Kentucky: por volta de setembro do ano que vem, dois meses antes da realização do pleito presidencial, mais 23 mil voltarão ao que chamam, com uma das mãos, a que tiver sobrado, sobre o coração e desafinarão a patriótica canção My country tis of thee.

Lembremos que 56% da população americana e todo o Comando Militar americano são a favor da retirada total o mais rápido possível. Há, pois, votos paca aí nessa jogada.

Só tem uma coisinha. Continuarão no país amigão, onde altas autoridades americanas garantem não haver mais um único membro da Al-Quaeda, cerca de 70 mil soldadinhos armados até os dentes. Para ajudar no trânsito, transporte de papoulas, senhoras a empurrar o carrinho no supermercado, essas milicagens.

Os franceses, que não são bestas, seguiram o obamal exemplo e mandam de volta para casa seu contingente de 4 mil “soldados” (sempre em aspas, tratando-se de gauleses). E o vivaz e ricamente vestido presidente Karzai continuará a receber US$ 10 bilhões por mês. Para as verduras, na certa, conforme se dizia para certas senhoras ao deixar uma ou duas notas de 20 no criado-mudo.

Os ingleses, de presença reduzida no conflito (morreram apenas 374 rapazes) também irão se afastar da região. Há mais o que fazer por aqui. Cuidar dos grevistas e das bonificações dos banqueiros, por exemplo.

No meio disso tudo, o que me ficou mesmo na cabeça, pois gosto de prestar atenção nessas verbosidades, foi quando Obama disse que eles, os americanos, “são tão pragmáticos quanto passionais”. Estou até agora tentando decifrar o que é que o magnífico orador quis dizer com isso.

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