sábado, 27 de agosto de 2011

Projeto do império: EUA gostariam de envolver o Brasil

Reproduzimos aqui trechos do ensaio de Lorenzo Carrasco publicado no Resenha Estratégica:


O renomado Conselho de Relações Exteriores de Nova York (CFR), o principal centro de pensamento estratégico do Establishment dos EUA, acaba de divulgar um novo relatório sobre o Brasil, que não apenas contém diretrizes para a política estadunidense, como também explicita a visão dos autores sobre a posição brasileira no cenário global, no futuro próximo. A importância do documento pode ser aquilatada pelos autores, uma força-tarefa independente de luminares do Establishment encabeçada por Samuel W. Bodman, ex-secretário de Energia do governo Bush filho (2005-09) e James D. Wolfensohn, ex-presidente do Banco Mundial (1995-2005).

Com a leitura do documento, um observador desavisado poderia ter a impressão de que o velho sonho de consumo de numerosos representantes da elite política e diplomática brasileira, um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), estaria a ponto de fazer-se realidade. Logo de início, o texto afirma: "A Força-Tarefa recomenda que o governo Obama endosse plenamente o Brasil como um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A Força-Tarefa incentiva o governo a considerar as importantes dimensões regionais, multilaterais e de governança global de um tal passo, na medida em que engaje o Brasil em um intenso diálogo sobre este assunto."

O relatório também ressalta o papel do Brasil como "ator global", em função da importância da economia brasileira, especialmente, em função do crescimento populacional, seu enorme potencial de recursos naturais, especialmente na área energética - hídrica, petrolífera e nuclear -, potencial de produção alimentícia e papel emergente nos assuntos da ordem mundial, com ênfase em sua projeção frente à África.

Segundo o texto, "devido às massas terrestres, economias, populações e base de recursos de ambos os países, o Brasil e os EUA interagem, necessariamente, em um mundo crescentemente globalizado e multipolar".

O Brasil e o Conselho de Segurança da ONU

Entretanto, antes de se aprofundar a análise do contexto estratégico em que se inscreve o relatório do CFR, deve-se destacar que a proposta da inclusão do Brasil no clube dos membros permanentes do CSNU, não é apenas um reconhecimento objetivo da importância global do País, mas tem embutida uma intenção manifesta de cooptá-lo para um projeto de reestruturação do poder mundial em que permanecem intocados os axiomas fundamentais do atual sistema global. Por exemplo, o documento sequer menciona a crise do sistema financeiro e bancário internacional, que tem sido a base da hegemonia anglo-americana no cenário internacional e, na realidade, é o principal item de uma agenda de reformas necessária para proporcionar uma verdadeira mudança da ordem de poder mundial. E, muito menos, cita o inevitável recuo estratégico anglo-americano diante do visível fracasso das intervenções militares na Ásia Central e no Oriente Médio, que coloca em xeque a expansão da sua estratégia hegemônica baseada no controle de recursos naturais - diante da qual é bastante conveniente a opção de cooptar o Brasil como alternativa para o fornecimento desses recursos.

O controle hegemônico dos fluxos monetários

Assim, o CFR, ainda que aceite formalmente a realidade de um mundo multipolar, não abre mão da pretensão de perpetuar o esquema hegemônico baseado no sistema de "livre comércio" e no controle dos fluxos monetários e financeiros, que tem prevalecido desde a emergência e a consolidação da Inglaterra como poder colonial, no final do século XVII e início do XVIII. Sem uma reforma do sistema de bancos centrais "independentes", que surgiu com a criação do Banco de Inglaterra, em 1694, e a devolução aos governos nacionais da prerrogativa de emissão da moeda e do crédito, em paralelo com uma drástica redução do financiamento dos Estados nacionais pela emissão de títulos de dívida, nenhuma proposta de reformas globais pode ser levada a sério, nem terá qualquer impacto duradouro sobre a estrutura de crises em curso.

O Brasil exportador de matérias primas e potência ambiental



Em vez disso, o relatório deixa claro que a oligarquia anglo-americana gostaria de enquadrar o Brasil no molde de um grande exportador de matérias-primas e uma "potência ambiental", que abra mão da utilização plena dos seus recursos naturais para o desenvolvimento interno soberano do País e da América do Sul, pelo processo de integração regional. Neste particular, é relevante que, enquanto ignora a necessidade de um aprofundamento qualitativo e quantitativo da industrialização do País, o documento destaque o potencial de exportação de produtos primários - energia e alimentos - e a autoimposição de uma draconiana legislação ambiental, que nenhum país industrializado adotou, a começar pelos próprios EUA. Tal tendência é explicitada no trecho a seguir: "A floresta amazônica é, em si própria, um valioso recurso, que recicla dióxido de carbono para produzir mais de 20% do oxigênio do mundo."

Ou nas passagens seguintes:

 Os perfis energético e ambiental do Brasil estabeleceram o país como um importante ator internacional em dois dos desafios globais mais centrais e estreitamente interligados: a segurança energética e as mudanças climáticas. Com pelo menos 50 bilhões de barris de petróleo sob as águas brasileiras, 167 milhões de barris anuais de produção de etanol (e planos para aumentar a produção para mais de 400 milhões de barris até 2019), usinas hidrelétricas que fornecem 75% da eletricidade brasileira e a sexta maior reserva comprovada de urânio do mundo, o Brasil está destinado a tornar-se um significativo exportador de diversos produtos energéticos...

Uma estratégia “mexicana” para o Brasil

... a oferta do Establishment anglo-americano para promover o Brasil como "ator global" segue de perto o roteiro utilizado no final da década de 1980 e início da de 1990, para convencer o México a aderir ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), com a promessa de que o país se converteria em um membro destacado do "Primeiro Mundo" - e, ao mesmo tempo, um interlocutor preferencial com as demais nações da América Latina. O resultado desta pregação interna dos governos de Carlos Salinas de Gortari (1988-1994) e Ernesto Zedillo (1994-2000) foi a profunda crise que assola o México, que viu destruída a sua capacidade de produção de alimentos e enfrenta claros riscos de desintegração nacional. Ademais, nenhuma nação da América Latina aceitou a alardeada "liderança diplomática" do México, que passou a ser considerado como pouco mais que um porta-voz de políticas estadunidenses.

Para o Brasil não seria diferente: "Com o Brasil como membro permanente do CSNU, o Brasil e os EUA, necessariamente, trabalhariam juntos em todos os desafios importantes nas áreas da segurança internacional, desenvolvimento e questões humanitárias, criando, potencialmente, as condições para uma relação e cooperação bilaterais mais estreitas em uma gama de assuntos ainda mais vasta, inclusive, dentro da região."

Neste ponto, a verdadeira emergência do Brasil como ator global passa, necessariamente, pela consolidação e aprofundamento do processo de integração da América do Sul, que deve avançar a um sistema de união aduaneira, para defender o enorme mercado interno regional dos embates depredadores do "livre comércio" globalizado.

Multipolar, mas só com "livre comércio"

A iniciativa do CFR não é nem independente nem isolada, integrando um intenso debate que se trava no interior do Establishment anglo-americano, sobre os rumos que a ordem mundial poderá tomar a partir da atual crise financeira e bancária mundial. Isto fica evidente pelo fato de, simultaneamente ao relatório do CFR, uma proposta semelhante vem sendo feita pelo Establishment britânico, na linha de elevar o status brasileiro no CSNU.

Em um contexto mais amplo, em 20 de julho, o vice-chanceler Jeremy Browne proferiu, na Chatham House, um discurso intitulado "Navegando na Nova Ordem Mundial: o Reino Unido e as potências emergentes". A entidade, formalmente conhecida como Real Instituto de Assuntos Internacionais (RIIA), é uma instituição basilar do Império Britânico, que desde a década de 1920, juntamente com o CFR (criado à sua imagem e semelhança), integra o núcleo duro do chamado Establishment anglo-americano. De fato, a criação deste núcleo marcou a culminação do processo de cooptação dos EUA aos desígnios imperiais britânicos, no âmbito do processo de reformulação do imperialismo clássico, nas primeiras décadas do século XX.

O discurso de Browne teve como objetivo responder à pergunta: como a Grã-Bretanha, como potência mundial consolidada, deve responder à ascensão das potências emergentes e à nova ordenação de poder mundial que elas estão ensejando?

Para não deixar qualquer dúvida, Browne reafirma que "devemos assegurar-nos de não esquecer de que o livre comércio é central para a dinâmica que está reconfigurando a ordem mundial".

A insistência em colocar o sistema de "livre comércio" no núcleo a ser preservado dentro da reorganização da estrutura do poder global significa que as oligarquias hegemônicas que controlam o sistema financeiro mundial não estão dispostas a abrir caminho pacificamente ao advento de uma nova ordem substancialmente diferente do sistema que surgiu na consolidação da hegemonia mundial anglo-holandesa, ao final do século XVII. Vale recordar que, em uma espécie da pré-história do sistema de "livre comércio", enquadrava-se a pirataria, uma guerra naval irregular, por meio da qual as potências coloniais emergentes, Holanda e Inglaterra, minaram o poder econômico e financeiro do Império espanhol. A paz de Utrecht, em 1713, marcou a vitória das potências protestantes, Holanda e Inglaterra, sobre sua rival católica, a Espanha dos Habsburgo. A partir daí, predominou a hegemonia inglesa, baseada no "livre comércio" e no domínio dos oceanos.

A pirataria foi a forma incipiente do sistema de "livre comércio", mais tarde institucionalizado pelo sistema de bancos centrais "independentes", a partir da criação do Banco da Inglaterra. Isto, e não simplesmente uma crise cíclica do capitalismo, é o que está no núcleo da presente crise mundial. É evidente que a própria maneira de pensar, isto é, os sistemas de conceituação predominantes, estão em profunda crise e, portanto, não está claro para as elites hegemônicas um rumo certo e definido. É esta crise que está permitindo a emergência de novos atores, entre eles o Brasil, que podem conduzir uma verdadeira revolução, para corrigir efetivamente os rumos da Civilização, fora das matrizes coloniais livrecambistas.

Portanto, não é o eventual reconhecimento das potências hegemônicas que poderá levar o Brasil e as outras potências emergentes à condição de protagonistas da reconstrução da Civilização universal. As nações devem estar conscientes de que uma nova realidade mundial está para surgir, na qual os valores inalienáveis do homem, como a vida, a liberdade e a busca da felicidade, como estabelecido na Declaração da Independência dos EUA, juntamente com os princípios do Estado nacional soberano, deverão ser as bússolas que orientarão o processo civilizatório ao longo do século XXI.

Um comentário:

  1. Muito bom esse estudo que abre que nos permite abrir os olhos para esses interesses nefastos e vorazes do império. No entanto, devemos nos conscientizar de que o nosso desenvolvimento nos insere em importância na elite do mundo. Não devemos temer a glória, mas, atentar para a escória.

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